Em uma entrevista para o Projeto Ataque aos Cofres Públicos, a historiadora Virgínia Fontes, que está entre os maiores pesquisadores sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, dá um recado aos santistas deslumbrados com palavras como “choque de gestão”, “publicizacão”, “privatização” e “terceirização”. Esses termos têm se repetido depois que a prefeitura encampou uma batalha para enfiar goela abaixo as tais Organizações Sociais (OSs) nos serviços públicos.
Na verdade, Virgínia dá um chacoalhão em todos que esqueceram sua essência na luta de classes. Algo do tipo “desce do salto e calce suas botas de operário que és!” ou “você é trabalhador, orgulhe-se disso, tenha consciência da grandeza de seu papel e lute por seus direitos!”.
Numa época em que as pessoas estão mais preocupadas em classificar superficialmente umas às outras de coxinhas ou de petralhas pelo facebook, as questões mais profundas acabam mesmo em segundo plano. Nesta entrevista, Virgínia relembra algumas:
AcCP: Fale para o santista o que significa privatizar ou terceirizar unidades públicas:
Virgínia Fontes: A entrada das OSs têm duas patas. Estas duas patas ou duas pernas são dramáticas. Imagine um trabalhador que vê o seu local de trabalho sendo substituído por outro trabalhador, que ganha mais, mas que tem menos direitos, ou que ganha menos e tem menos direitos. A OS é uma empresa sem fins lucrativos, que vai se apresentar publicamente como estando lá (no serviço público) só por generosidade. Isso significa que se ela não pode ter lucro contábil, ela pode engordar. E ela vai engordar os seus diretores, os seus gestores. Com que dinheiro? Com o dinheiro dos cofres públicos. Então vamos para a primeira pata, que é a do desgraçamento do trabalhador. Para funcionar em alguns lugares, para quebrar o conjunto dos trabalhadores do serviço público, elas podem até pagar mais aos contratados das OSs do que se paga na administração direta. Mas eles não tem direitos. Quando conseguirem quebrar os direitos dos trabalhadores do serviço público, vocês acham que vão permanecer direitos para os terceirizados? Não, vão ser quebrados também. E como é que vocês acham que vai ficar o serviço para o povo? Ponham-se no lugar desses trabalhadores. O que as OSs estão fazendo é estimular a competição entre eles. Eu dei o exemplo que quando elas aumentam o salário. Mas a maioria das OSs diminui o salário. Diminui e bota esses funcionários agora precarizados, lado a lado com os outros. Eles não participam mais das lutas dos demais trabalhadores. Terceirização se trata de quebrar a organização da classe trabalhadora.
AcCP: Isso dentro e fora do serviço público?
Virgínia Fontes: A gente está falando das OSs para os serviços públicos. É bom lembrar que a terceirização acontece dia a dia no setor privado e a proposta é sempre a mesma. Pagando temporariamente por cima alguns trabalhadores ou temporariamente por baixo massas de trabalhadores, quebra-se a unidade da classe.
E, de quebra, essas empresas obtém o lucro?
Exatamente. Esse é um segundo ponto. Porque o que se trata aqui é de dividir o lucro que vem da exploração do trabalho entre sucessivas camadas de capitalistas. O capitalistinha, o capitalista médio, o capitalista grande e o capistalistaço. Todos exploram em cooperação os mesmos trabalhadores. Eles precisam dividir esses trabalhadores para que não entrem juntos na luta.
AcCP: Em Santos também há o conceito de que o funcionário público é folgado e que o privado, via OSs, vai ter metas a cumprir, o que para a população é melhor.
Virgínia Fontes: Antes eu falei de duas patas pelas quais se dá as entradas das OSs e fiquei só na primeira, a da fragmentação da classe trabalhadora. Vamos para a segunda pata, que é a da destruição dos direitos. Serviço público não é em princípio pior ou melhor que o serviço privado. Quem sustenta os dois são os trabalhadores. Porém, do serviço público dependem as políticas públicas, fruto de nossas conquistas, nossas lutas. Nós, servidores, exigimos que isso não seja mercadoria. Enquanto que no setor privado os trabalhadores infelizmente são obrigados a produzir cada vez mais e mais mercadorias, não garantindo a sobrevida nem de si próprios e nem dos outros. A segunda pata da entrada das OSs é a suposição de que desqualificando trabalhadores nós vamos conseguir quebrar de vez a luta do conjunto. Vocês que estão no setor privado, não se iludam! Quando se desqualifica os servidores, que em sua maioria estão devotados à causa pública, o próximo passo é desqualificar também os trabalhadores do setor privado, que, na verdade, ao serem fragilizados nas suas conquistas, ficam cada vez mais nas mãos do capital altamente concentrado, desse acordão de níveis diversos de concentração de capital para explorar o trabalho alheio.
AcCP: E quem se dá mal com isso também é o usuário. Ele acha que não tem nada a ver com a luta desses trabalhadores, mas acaba recebendo esse reflexo de toda essa precarização…
Virgínia Fontes: Não há usuário. Há ser social. Há classe trabalhadora. Esta história de chamar quem vai no serviço público de usuário já é um eufemismo para dizer que você é cliente, não que você tem direito à saúde. De vez em quando os jornais vão dizer : ‘o mundo do trabalho acabou’; ‘os trabalhadores não existem mais’. Lembrem-se: vocês saem de madrugada para pegar o trem, vocês produzem o dia inteiro, muitas vezes aos sábados. Lembrem-se, inclusive, que nós, mulheres, vamos trabalhar a mais para resolver todos os problemas domésticos e conseguir reembarcar na segunda-feira no trem. Quem usa não pode esquecer de sua condição de trabalhador. Vocês têm direitos. Direito à saúde pública, universal, de qualidade, à educação pública, ao transporte público, em suma, direito a mandar no mundo que vocês produzem.
“Temos de nos redescobrir trabalhadores”
Ao mediar a mesa de debatedores no Seminário da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, realizado em março, no Rio de Janeiro, a historiadora Virgínia Fontes fez mais provocações importantes.
Afirmou que é preciso qualificar a crise do capital, mas que a primeira questão é garantir que não sejamos nós, trabalhadores, os salvadores do capitalismo e de sua crise. “O capitalismo não morre de suas crises. Ele morre de luta de classes. Ou nós o enfrentamos, ou mais uma vez seremos os gestores de sua crise”.
Para a pesquisadora e historiadora, a classe trabalhadora tem todas as cores, em especial as que são submetidas a opressões diárias. A classe trabalhadora tem todos os gêneros, mora em muitos bairros, alguns especialmente perversos, onde ela é segregada, mas todos seus integrantes devem entender que estão do mesmo lado da sociedade.
Virgínia argumenta que há saídas para o atual momento, que cada luta é singular e deve ser travada na radicalidade que ela exige. Mas há muito mais envolvido. “Todas as lutas especificas são fundamentais. É assim na luta contra o racismo, contra o machismo, contra o extermínio dos povos indígenas. Em todas elas a peleja contra o capital deve estar clara. Em todas elas temos de nos redescobrir trabalhadores. Ou reaprendemos isso, ou estamos fadados a nos ver divididos pelo capital, pagos para gerir distribuição de migalhas para os nossos setores particulares”.
Se recusa a classificações e eufemismos. “O capital nos define unicamente como mão de obra e, não, como seres humanos. Mas é como seres humanos que temos de enfrentar o capital. Em todos os momentos da vida. Em casa, na intimidade, e também nos espaços mais evidentes. Nesta luta, é preciso usar palavras cortantes. Não passemos esmaltes em nossas palavras. A cada vez que a gente fingir que não é o que é, eles vão nos matar pelo o que a gente finge e pelo o que a gente é”.
Sem Comentários
Deixe um Comentário
Você precisa fazer login para publicar um comentário.
Pareceu interessante (embora radical em alguns momentos) até expandir o tema para diferenciações de gênero, e posteriormente de raça. Qual é a dificuldade de deixar de lado essa demagogia que só serve para dividir cidadãos? Fale da massa de trabalhadores como um todo, sem demonizar os que provêm empregos e sem tentar criar seres especiais entre os indivíduos.
Fica dificil levar a sério o discurso de algumas pessoas quando são contaminados por ideologias que não se sustentam. Pode até parecer promissor, mas fica manchado.