Entrevistamos o presidente do Sindicato dos Médicos de Santos, São Vicente, Cubatão, Guarujá e Praia Grande (Sindmed), Álvaro Norberto Valentim da Silva. Ele se coloca contra as organizações sociais (OSs) nas unidades públicas de saúde e critica a falta de fiscalização diante da quarteirização desenfreada que o modelo traz. Para o médico, o sistema precariza os serviços e o atendimento à população. No entanto, o Sindmed integra o Conselho Municipal de Saúde, entidade que se omitiu por completo na época em que a prefeitura e os vereadores de Santos aprovaram a Lei das OSs sem discutir com a população. Veja o que ele tem a dizer sobre o assunto.
O Sindicato dos Médicos faz parte do Conselho Municipal de Saúde, órgão que assistiu passivamente a Prefeitura e a Câmara tomarem as decisões na terceirização via OSs. O Sindmed é a favor desse modelo de gestão?
Álvaro Silva – Precisamos colocar duas coisas. Uma é a OS em si tomando conta de uma parcela daquilo que deveria ser do poder público. Outra coisa que tem acontecido é que as prefeituras, os estados, e a União terceirizam esses serviços através de OSs e Oscips e depois deixam de ter gestores que acompanhem. E o que acaba acontecendo? A quarteirização. O que que é isso? Uma OS terceiriza o serviço que deveria ser dela. Não contrata trabalhadores para trabalharem na OS. Ela contrata pessoas jurídicas. Empresas que, por sua vez, contratam outras pessoas e até outras empresas – então temos a terceirização da quarteirização. Isso se torna uma bola de neve.
Quais os reflexos disso?
Álvaro Silva – Vamos voltar um pouquinho. A Lei de Responsabilidade Fiscal obriga as prefeituras, o Estado e a União a terem 51% de sua folha com funcionalismo. Quando ela veio a gente achou que ia ser um bem. Mas do jeito que está sendo colocado agora, tem se tornado um problema para algumas áreas. A Saúde é uma delas. Educação é outra. Isso está trazendo problemas porque, muitas vezes, o gestor público, na ânsia de fazer economia ou achando que está fazendo um bom negócio, acaba empregando um dinheiro muito grande numa OS ou numa Oscip, sem ter a contrapartida do serviço. Vai ter um serviço precário, a população vai ter uma qualidade muito ruim, mas o poder público está tranquilo porque não é problema dele, é problema da OS, da Oscip. E se tiver algum problema, se a população reclamar, ele fala que é culpa da empresa que está prestando o serviço.
Uma maneira do poder público tirar sua responsabilidade?
Álvaro Silva – Sim, ele diz: ‘olha, quem está dando o serviço é essa empresa’. O problema é que o gestor público não fiscaliza a empresa. A gente tem visto Tribunal de Contas de municípios, do Estado e da União, cancelando licitações, levantando problemas com a gestão dessas oscips e OSs. Muito dinheiro pago sem ter sido realizado realmente o serviço. Os apontamentos não são feitos adequadamente. Ou então, como já acontece nos nossos municípios vizinhos, você tem lá uma empresa de médicos prestando serviço para uma OS. A prefeitura atrasa o pagamento para a OS que fala: ‘olha nós não vamos pagar vocês porque a prefeitura não nos está pagando’. Esse movimento acaba gerando problemas no atendimento e na atuação do próprio profissional. As vezes esse profissional está ligado a outras áreas, a outros municípios. Ele fala: ‘se não estão me pagando aqui e não vou trabalhar aqui, vou pedir minha rescisão de contrato e vou para outra’. E o município fica sem atendimento.
Há diferença na atuação e condições de trabalho de um médico atuando em unidade pública com administração direta e entre um médico contratado por OS, de forma terceirizada?
Álvaro Silva – Na realidade a atuação profissional não deveria ter diferenças. Você é profissional sendo contratado por CLT, por concurso público, ou por uma OS. Mas há uma diferença importante, que é questão da estabilidade ou segurança. Prestando serviço para uma OS não se tem a garantia do emprego. Na prestação de serviço por uma OS, muitas vezes o médico trabalha por RPA . Pode fazer isso por três a seis meses. Nesse caso precisa constituir uma empresa. O profissional vira sócio de uma empresa que as vezes nem quer, mas é obrigado, se quiser trabalhar. Não há segurança da carteira assinada e do estatuto que vai te dar uma aposentadoria no final. Isso traz uma série de inseguranças.
O vínculo é mais precário?
Álvaro Silva – Exatamente.
E a rotatividade?
Álvaro Silva – É alta. Temos visto isso. Nós fazemos parte de um grupo de sindicatos que está em atuação no Brasil todo. Hoje somos cerca de 53 entidades no país. Temos discutido esse problema. Quase 100% dos sindicatos de médicos do Brasil são contra a terceirização. Nós somos contra a utilização de OSs e Oscips na área da saúde porque o vínculo não pode ser precário. Ele tem que ser real para que esse profissional da saúde tenha segurança na sua vida e possa dar o atendimento adequado à população.
O vínculo com a população, a relação com o paciente é melhor quando o vínculo empregatício é sólido, direto?
Álvaro Silva – Muito melhor. Quando você tem um vínculo direto com a municipalidade ou com o Estado por concurso público ou mesmo CLT, o vínculo com a população e com aquilo que você faz é maior. Há mais comprometimento. A Constituição Federal diz que a saúde é direito do cidadão e o dever do Estado. Nesses últimos anos isso tem sido relegado ao segundo plano. Tanto é assim que tem toda essa história de terceirizar os serviços de saúde, através de leis municipais, como está acontecendo atualmente.
Na sua opinião essa terceirização vai contra a Constituição, contra a proposta original do SUS?
Álvaro Silva – Sim, porque você acaba trazendo para a iniciativa privada uma coisa que deveria ser do serviço público. A atenção à saúde deve ser exclusividade do serviço público. Temos discutido, inclusive, que a saúde deveria ser desvinculada da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Essa lei em áreas essenciais como a saúde traz grandes problemas. Deveria ser uma regra diferenciada?
Álvaro Silva – Pelos menos diferenciada. O Governo Federal fez um corte de verbas e o segundo ministério mais atingido foi o da saúde: 9,2 bilhões foram retirados do SUS. Quando o Governo Federal faz isso o estadual também diminui o investimento e o governo municipal, idem. Num todo a saúde está sendo prejudicada quando deveria ser prioridade e ter um tratamento diferenciado em relação às outras áreas. Não porque nós somos médicos, mas porque há a real necessidade desse tipo de tratamento.
Porque se lida com perspectiva de vida ou morte?
Álvaro Silva – Claro. É diferente de você trocar um parafuso. Por exemplo, vou tratar do asfalto na rua. Se eu errar a colocação dos asfalto, tenho a possibilidade de ir lá com uma maquina e refazer. Na saúde não há essa possibilidade. Quando se comete um erro de avaliação, um erro de conduta, você está causando um dano que na maioria das vezes é irreparável. Pode levar a uma sequela definitiva e, em casos extremos, à morte.
Há um movimento de difamação e desconstrução do SUS. Os gestores se utilizam desse senso comum e, pior: intencionalmente não agem para melhorar os serviços, que são sucateados justamente para reforçar o pensamento hegemônico de que tudo o que é estatal é ruim e tudo o que vem da iniciativa privada é bom. Assim, ganham força na hora de justificar mudanças na gestão. O SUS está do jeito que está por omissão dos gestores?
Álvaro Silva – O SUS de hoje é o reflexo dos vários momentos da saúde, que nesses últimos anos não tem sido vista como deveria. Não tem sido cuidada como deveria. Isso reflete diretamente na atual situação e qualidade do SUS. Quando ele foi pensado lá atrás, o que se imaginou? Dar o atendimento universal, só que isso não foi confirmado no decorrer dos anos. Usaram a verba da saúde para outras coisas e não deram a devida atenção aos SUS, hoje altamente criticado não por causa da ideia em si, mas por causa do modelo de gestão que foi instituído nesses últimos anos. Não deram a devida audiência, qualidade e atenção. Por isso está neste estado precário. O Governo Federal, nos últimos anos, tem olhado com mais bons olhos a iniciativa privada na saúde, os planos de saúde, as operadoras de planos de saúde. Hoje 55 a 60 milhões de pessoas no Brasil estão nos planos de saúde por que? Porque o Governo abriu mão da atenção em saúde para as operadoras, sem dar a devida atenção ao SUS.
No fundo é uma privatização por dentro do SUS? Uma das várias maneiras não clássicas de privatização?
Álvaro Silva – Exato.
Quando começou o processo de publicização, os conselhos municipais foram omissos. Não houve nenhuma voz de resistência dentro do CMS. O Sindicato dos Médicos não poderia ter feito algo?
Álvaro Silva – Temos só dois representantes no CMS. Deveríamos ter mais representação lá. Quando o nosso representante, em alguma ocasião, tentou levantar essa questão da possibilidade de se abrir a terceirização na saúde, dizendo que isso não era interessante e que a gente era contra, essa voz não foi ouvida.
Não existe uma unidade dentro do conselho em torno dessa posição ante-terceirização?
Álvaro Silva – Não. Esse Conselho deveria se reunir algumas vezes fora do fórum onde ele está sendo feito. Quando se reúne o conselho e se faz dessa reunião uma questão formal, não há discussão como deveria. As entidades que representam os trabalhadores da saúde deveriam trazer o debate para um fórum extra conselho municipal, onde pudessem discutir essa situação, que é prejudicial aos trabalhadores e à comunidade.
Existem entidades que não têm vínculo nenhum com a saúde?
Álvaro Silva – Sim e são representadas lá. Não que não possam, já que saúde deve ser de interesse de todos. Mas é que essas entidades não estão no dia a dia, na frente do trabalho em saúde, como as que representam os trabalhadores da área, sejam eles os enfermeiros, fisioterapeutas, médicos, terapeutas ocupacionais etc. Acho que deveríamos tentar fazer um fórum destas entidades para que a gente possa discutir melhor o futuro da saúde no município.
Isso poderia ajudar na fiscalização? Temos a entidade que foi escolhida e que será contratada para gerir a UPA, que é Fundação ABC. Temos feito muitas denúncias mostrando as irregularidades que pesam sobre essa OS em outras cidades onde ela atua. Mesmo assim, ela foi qualificada pela Prefeitura e será beneficiada com um contrato de R$ 19,1 milhões por ano para cuidar de uma unidade. O que se pode fazer?
Álvaro Silva – A única saída é levar os fatos ao Ministério Público. São poucas as nossas saídas. Levar para a população os problemas para que se façam as pressões necessárias aos seus representantes. Ir ao MP e falar: ‘tem uma entidade que vai cuidar da saúde aqui e que tem problemas. Essa empresa está idônea para passar por essa contratação?’.
O Sindicato dos Médicos subscreveria um documento contendo esse alerta ao MP?
Álvaro Silva – Volto à nossa conversa anterior. É hora de sentar com todas as entidades, levantar a situação e, se for o caso, que as entidades levem isso ao MP para poder tentar reverter essa situação ou minimizar os danos à saúde.