Ultrapassando as projeções mais pessimistas sobre a entrega da saúde pública para organizações sociais (OSs) que visam apenas o lucro, a cidade de Arujá, em São Paulo, fornece exemplos bem elucidativos sobre os efeitos nefastos desse tipo de terceirização dos serviços públicos.
Isso porque a Polícia Civil investiga o suposto desvio de analgésicos da rede municipal de Saúde para a produção de cocaína de uma facção criminosa. Segundo o delegado Fernando Goes Santiago, do 4º DP de Guarulhos, a manobra só foi possível porque um dos integrantes da facção, o traficante Anderson Lacerda Pereira, conhecido como Gordão, também controlava a gestão de um hospital municipal e de uma Unidade de Pronto Atendimento do município, por meio de uma OS.
O mesmo investigado ainda era o controlador da antiga empresa de coleta de lixo do município, que também tinha contrato para coleta de lixo hospitalar do Hospital e Maternidade Dalila Ferreira. De acordo com os investigadores, as contratações foram feitas por meio de laranjas.
O delegado responsável pela investigação explicou que anestésico desviado do hospital terceirizado era cem vezes mais forte que a morfina. Ao adicionar o medicamento na mistura, Anderson conseguia reduzir o volume de cocaína pura, que é muito cara. Para equalizar, usava também outras substâncias, como cafeína, e assim elevava a lucratividade.
Histórico da Investigação
A primeira fase da Operação “Soldi Sporchi” (Dinheiro Sujo) teve início em 3 de junho deste ano, com foco na empresa que na época era responsável pela coleta de lixo na cidade. Na época, 12 suspeitos foram presos.
Oito dias depois, a polícia apreendeu um caminhão para lixo comum, que tinha saído do Hospital Municipal, e que estava carregado, de forma irregular, com insumos hospitalares e remédios.
Além de ser responsável pela empresa de coleta de lixo do hospital, Anderson Lacerda Pereira também geria a empresa que servia refeições aos pacientes e funcionários da unidade de saúde. A polícia descobriu que os alimentos eram preparados de forma precária na cozinha de um dos imóveis que o traficante possui em um condomínio de luxo da cidade.
Anderson Lacerda Pereira também é dono de uma rede de clínicas médico-odontológicas, com cerca de 60 unidades no Estado de São Paulo, e usava a mesma casa onde preparava refeições hospitalares como depósito de produtos químicos para a rede.
Na cozinha clandestina, a polícia encontrou barata, alimentos vencidos, produtos e materiais odontológicos e químicos que não poderiam ficar perto de comida.
Todo poder e influência do investigado na rede municipal de saúde de Arujá começou em 2018, por meio da contratação de uma organização social sem licitação controlada por ele. O escolhido como laranja para esta entidade, segundo a investigação, foi um morador de rua. Depois, a gestão foi trocada por outra, mas o domínio de Anderson foi mantido. A organização se manteve na gestão até fevereiro de 2020.
Paralelamente aos negócios junto à administração municipal, o controle na área da saúde facilitava o atendimento de criminosos da facção criminosa que eram baleados ou feridos de alguma forma. A ordem era que a polícia não fosse avisada sobre o socorro oferecido a esses pacientes.
Todo baleado, ainda que seja um inocente, a equipe tem que comunicar a polícia quando a pessoa é atendida.
Excentricidades
O jeito de viver do traficante, que, de acordo com a polícia, já teve ligação com a máfia italiana e já foi condenado por tráfico internacional de drogas, lembra o do traficante colombiano Pablo Escobar, com direito inclusive a uma coleção de animais exóticos, como um jacaré e macaco, em um sítio de Santa Isabel.
Pablo Escobar ficou conhecido por várias excentricidades, inclusive por montar um zoológico em sua luxuosa fazenda.
O patrimônio estimado de Anderson Lacerda Pereira é de R$ 130 milhões. São mais de 60 imóveis, pelo menos 20 casas em condomínios de alto padrão, clínicas odontológicas, empresas que fornecem insumos hospitalares e até pousadas em Porto de Galinhas.
As empresas e as organizações sociais que administram unidades de saúde serviam para lavar dinheiro de roubos e do tráfico de drogas, mas Lacerda estava sempre preocupado em aumentar a lucratividade, segundo a polícia.
“Eles procuravam ter um lucro de 50% do pessoal, de serviços terceirizados também em grande parte superfaturados. Em uma das anotações do Anderson encontramos a frase: ‘A economia é o nosso lucro’”, diz o delegado responsável, Fernando José Goes Santiago.
Até rachadinha de salários estavam entre as estratégias para desviar dinheiro público. Isso porque a organização criminosa ficava com parte da remuneração de funcionários.
Até 2014 Anderson Lacerda liderou um esquema de tráfico internacional da quadrilha de Marcos Camacho de São Paulo para a Europa, para uma temida máfia italiana. Em 2017, foi condenado a 21 anos por tráfico internacional de drogas. No ano passado a Justiça reduziu a pena para sete anos. Depois disso, nunca mais foi localizado pelas autoridades. Passou a ser considerado foragido, mas não parou de cometer crimes, incrementando o portfólio de ilícitos e a lucratividade por meio da corrupção no serviço público.
E tem mais: a Corregedoria da polícia investiga quatro policiais civis suspeitos de extorquir dinheiro da quadrilha.
Como se deu a inserção na política municipal
O Programa Fantástico fez uma reportagem sobre o caso com a retrospectiva da relação entre o crime organizado e a corrupção na administração municipal.
No dia 30 de julho, foi realizada a segunda etapa da operação Soldi Sporchi, com mais oito presos, incluindo um policial civil, acusado de avisar de operações em andamento. Foi preso também o vice-prefeito de Arujá, Márcio José de Oliveira (PRB), que era advogado e vizinho de Anderson e suspeito de facilitar a assinatura de contratos com a Prefeitura.
Segundo as investigações, Anderson financiou parte da candidatura do político e, com a vitória, veio a cobrança, em novembro de 2017, treze meses após a eleição. De acordo com a polícia, o vice-prefeito chamou o prefeito José Luiz Monteiro (MDB), para uma reunião na mansão do traficante Anderson. O vice saiu logo e vários capangas estavam na sala. O assunto seria um suposto acordo criminoso que o vice teria feito durante a campanha eleitoral.
“O Márcio havia pego o dinheiro do Anderson pra campanha. Esse dinheiro não havia sido repassado para a própria campanha do prefeito. Mas que agora era hora de fazer esse pagamento, porque ele tinha investido e ele queria o dinheiro dele de volta”, contou uma testemunha que não foi identificada para ser protegida.
Segundo uma testemunha, o traficante exigiu nesta suposta reunião a assinatura de contratos na saúde e da coleta de lixo.
“O prefeito estava completamente transtornado, porque falaram que se ele não fizesse isso, todo mundo ia pagar com a vida. Ia morrer todo mundo, se não assumisse o compromisso que era do Márcio”, diz a testemunha.
Dois meses depois foi feito o contrato da coleta de lixo e três meses depois, de forma emergencial e sem licitação, o contrato com uma organização social para gerir o hospital municipal. Segundo a polícia quem mandava na OS era o Anderson, que controlava tudo que acontecia. “Começava a faltar medicamentos, insumos, alimentação”, afirma o delegado.
De janeiro de 2018 a janeiro deste ano, Anderson recebeu R$ 77 milhões da Prefeitura de Arujá.
O vice-prefeito Márcio José Oliveira ficou 13 dias presos e vai responder em liberdade por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, segundo a polícia.
Já o prefeito não foi investigado nesta fase da operação e não quis gravar entrevista. O advogado dele diz que não sabe se houve a reunião com ameaças ao prefeito. “Assim que o prefeito for intimado a depor formalmente, para declarar sua versão dos fatos dentro dos autos, serão esclarecido”, diz o advogado Matheus Valério Barbosa.
Anderson Lacerda Pereira segue foragido, assim como o filho dele, Gabriel Pereira, de 25 anos. “Em nota a defesa alega que não há comprovação de participação com crime organizado, máfia italiana, lavagem de dinheiro, atendimento de criminosos em fuga e uso de medicamentos em drogas”. O advogado não menciona o advogado e filho vão se entregar.