Mais uma vez a história se repete. O Estado entrega para a iniciativa privada serviços de saúde e a sanha pelo lucro acaba prejudicando radicalmente a vida de quem precisa de assistência. Não é a primeira vez que Organizações Sociais contratadas pelo poder público organizam mutirões de catarata que acabam por deixar pacientes cegos.
Desta vez, três pessoas foram prejudicadas no AME de Praia Grande, gerenciado pela Fundação do ABC, a mesma OS que comanda a UPA Central de Santos e vários outros equipamentos do Estado, mesmo tendo uma ficha corrida extensa de problemas nas várias cidades onde presta serviço.
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Confira abaixo a matéria do Jornal A Tribuna, com todos os detalhes do drama.
Pacientes perdem visão após cirurgia no AME de Praia Grande
Três homens realizaram o procedimento de catarata no mesmo dia; todos entraram na Justiça
Maurício Martins
Fotos: Matheus Tagé/AT
Três cirurgias no mesmo local, no mesmo dia e com o mesmo resultado dramático. José Geraldo de Jesus Fiarresgo, João Batista Belchior e José Lopes Pereira só queriam enxergar melhor quando entraram na fila para cirurgia de catarata. O efeito foi contrário: os três perderam a visão nos olhos operados.
O Governo do Estado diz que não foi citado na ação, mas está à disposição para prestar os esclarecimentos necessários. Afirma que o AME realizou os procedimentos seguindo todos os protocolos desde o pré-operatório, com cirurgias sem intercorrências e acompanhamento no pós-operatório.
“Os casos foram avaliados pelas Comissões de Infecção Hospitalar e de Ética do AME e não foi constatada nenhuma anormalidade na assistência”.
Os procedimentos aconteceram no Ambulatório Médico de Especialidades (AME), do Governo do Estado e administrado pela Fundação do ABC, em Praia Grande.
Os casos ocorreram em julho de 2017. Desde então, os três tentaram de tudo para voltar a enxergar pelos olhos prejudicados. Foram diversos tratamentos e até transplante de córnea foi feito dois deles. Nada, porém, devolveu a alegria de ver um mundo mais colorido.
Além do problema, que continua, eles têm uma pergunta sem resposta depois de mais de quatro anos: o que aconteceu naquele centro cirúrgico para um resultado tão adverso.
“Eu não tinha problema nos olhos, mas passei pelo oftalmologista para me cuidar. Ele falou que eu estava com começo de catarata, mas que não era para me preocupar, que estava no início, que poderia extrair e ter normal minha visão. Fiz do olho direito em janeiro de 2017 e deu tudo certo. Seis meses depois fui fazer no esquerdo. E já notei a diferença nessa segunda cirurgia, senti uma dor que parecia que o olho iria sair na nuca”, conta o aposentado José Fiarresgo, de 68 anos, morador de Itanhaém.
Após a cirurgia, o aposentado retornou várias vezes em consultas, sem conseguir enxergar do olho operado e com dor. Segundo ele, até hoje, nenhum tratamento feito resolveu o problema.
Em março de 2019 Fiarresgo fez transplante de córnea. Depois, colocou uma válvula no olho por causa da pressão alta. Ainda assim, só enxerga vultos.
“Me sinto frustrado, sempre fui uma pessoa ativa. Fazia tudo em casa, agora não consigo colocar um parafuso, com um olho só me atrapalho. Preciso de ajuda para fazer as coisas, perdi minha liberdade”, lamenta.
Não pode trabalhar
O aposentado José Pereira, de 71 anos, que mora em Itanhaém, fazia serviços de pedreiro para complementar a aposentadoria. Precisou parar quando perdeu a visão do olho direito após a cirurgia de catarata.“Eu ando na rua e parece que estou bêbado, foi perda total no meu olho. A verdade é que eu perdi minha vida, meus olhos eram tudo para mim. Hoje não posso nem trocar uma lâmpada e preciso pegar dinheiro emprestado para pagar as contas”.
Morador de Mongaguá, João Belchior, de 72 anos, se aposentou como motorista de ônibus. Hoje mal consegue dirigir, já que teve o olho esquerdo afetado. “Não enxergo desse olho, já cheguei a cair na rua. A gente perde toda a noção. Isso destrói a gente. Trabalhava com caminhão, fazia bicos, perdi minha CNH”, conta.
Segundo Belchior, no dia da cirurgia ele achou estranho porque a enfermeira alertou ao médico que o olho dele não estava dilatando com o colírio, procedimento que seria necessário para operar. “Mesmo assim me operou. Quando fui para a casa doeu o dia todo. Depois foram meses de R$ 500, R$ 600 de remédios por mês. Fiz o transplante de córnea, mas não voltei a enxergar. O médico disse que não tem mais jeito”
Na Justiça
Os três pacientes entraram com ação na Justiça contra o Governo do Estado, a Fundação do ABC e o oftalmologista responsável pelas cirurgias. O processo pede que os réus sejam condenados a pagar indenização por danos morais e estéticos (R$ 300 mil para cada paciente) ocasionados durante a cirurgia de catarata que resultou na deficiência visual, além de pensão mensal de um salário mínimo até o final da vida.O advogado Thyago Garcia, que representa os três homens, disse que um perito judicial poderá analisar melhor o que ocorreu nos olhos de seus clientes. Na ação, o advogado ressalta que eles participaram de um “mutirão de catarata” no AME de Praia Grande e foram operados na sequência, conforme prontuários: 10h, 10h40 e 12h15. Mas afirma que outros pacientes também tiveram o mesmo problema.
“No centro cirúrgico, eles perceberam que algo de errado ocorria, pois a cirurgia, quando comparada à primeira, foi extremamente dolorosa e, segundo relatos, estranha. Tudo fugiu da normalidade. No corredor, à espera do procedimento, era possível ouvir gritos na sala cirúrgica, revelando que algo atípico estava acontecendo”.
Thyago Garcia destaca que os pacientes nunca tiveram uma conclusão do que de fato teria ocorrido na cirurgia do olho afetado. “Nos bastidores, ouviram de determinados médicos que a cirurgia provocou o picotamento da córnea dos pacientes operados na época. É notório que algo de errado aconteceu, afinal, inúmeros pacientes operados naquele dia de mutirão ficaram completamente cegos do olho operado. Não se trata de mera coincidência ou complicação possível da intervenção cirúrgica”.
O advogado diz que, atualmente, os três homens “vivem angustiados, inseguros e deprimidos ante a impossibilidade de enxergar normalmente e de levar uma vida normal. Inclusive, são obrigados a conviver com as sequelas estéticas das cirurgias”.
Governo do Estado e Fundação do ABC negam erro médico
A Fundação do ABC afirma que não houve erro médico no caso mencionado pela reportagem. Diz que os pacientes foram submetidos à cirurgia de facoemulsificação, com implante de lente intraocular, sendo que não houve nenhum tipo de intercorrência durante os procedimentos cirúrgicos.
“Contudo, foi identificado, no acompanhamento pós-operatório, edema de córnea persistente, de causa inflamatória, que não se resolveu com os tratamentos clínicos realizados pela equipe do AME Praia Grande. Importante destacar que a inflamação é um efeito adverso previsto na literatura médica e cujas causas são diversas, inclusive doenças preexistentes e que diferem totalmente de casos de infecção”.
A Fundação informa, ainda, que os pacientes foram encaminhados para o Setor de Córnea do Departamento de Oftalmologia do Centro Universitário Faculdade de Medicina da Fundação do ABC (FMABC).
“Dois pacientes já realizaram transplante de córnea. Concomitante ao tratamento na FMABC, o AME Praia Grande continua prestando assistência integral, com outras avaliações e em diferentes especialidades. No momento, inclusive, um dos pacientes realiza procedimento pré-operatório no AME Praia Grande para realização de transplante de córnea”, diz, informando que lamenta a situação e segue à disposição dos pacientes.