Negligência, imprudência e imperícia. São esses os termos que uma paciente atendida no Hospital dos Estivadores de Santos, terceirizado para uma organização social, usa para contar o martírio pelo qual passou nos dias que antecederam o parto de sua filha.
Mai um caso noticiado que mostra o que denunciamos há anos aqui na página: gestão da saúde por OSs é sinônimo de ineficiência, irregularidades e falta de transparência no uso dos recursos públicos.
Abaixo transcrevemos na íntegra a matéria publicada pelo Jornal A Tribuna, no último domingo, dia 3.
Mãe quer processar hospital de Santos após médico dizer que filha estava morta; VÍDEO
Conforme a mulher, profissional se negou a fazer o exame, emitiu o laudo sem examiná-la e queria que ela tirasse o bebê
Dizem que coração de mãe nunca se engana. Para Maria Jaine Viana Salviano, de 30 anos, essa frase se cumpriu ainda no ventre materno, quando com apenas 9 semanas de gestação, ouviu de um médico do Complexo Hospitalar dos Estivadores, em Santos, que seu bebê estava morto e precisava retirá-lo.
Entretanto, sem crer no que estava ouvindo, decidiu ouvir uma segunda opinião, que não só lhe retomou a esperança, como confirmou o que seu coração sentia: a filha estava viva. (Veja no vídeo mais abaixo)
O caso aconteceu em 12 de agosto de 2022, quando Maria ainda estava no início da gestação e iniciando o acompanhamento. Agora com a filha Maria Clara de 8 meses nos braços, ela decidiu entrar com um processo contra o hospital e contra o médico, responsáveis por lhe darem o diagnóstico errado.
Ela conta que, na época, procurou o hospital para fazer um ultrassom por orientação da médica da Policlínica do Morro do São Bento, onde mora. Isso porque, nos primeiros exames, realizados no dia 28 de julho de 2022, o feto não apresentava batimento cardíacos, mas a profissional lhe disse que isso era normal no início da gestação, porém o exame deveria ser feito para tira quaisquer dúvidas.
“Chegando no Estivadores, eu entrei no consultório do médico, e ele olhou o laudo que a médica tinha me dado, que falava sobre o batimentos. Ele não me deixou realizar o exame e disse que meu bebê estava morto e que eu deveria me internar para fazer retirada do feto. Eu fiquei em choque, mas não aceitei”, conta a mãe.
Mesmo diante das negativas da paciente, o médico teria insistido para que Maria se internasse para retirar o bebê, que de acordo com ele, estava morto. “Ele me disse que eu era nova, que eu ia ter outras chances de ficar grávida, mas sequer me olhou, m examinou e muito menos me deixou fazer o ultrassom requisitado. Eu não aceitei e fui pelo coração. Eu sabia que a minha filha nã estava morta”, relata.
Aos prantos, Maria disse que saiu do hospital na companhia da irmã e foi auxiliada pela cunhada, que marcou uma consulta particular para o dia seguinte para que ela pudesse realizar o exame. “Eu entrei em desespero, meu esposo também. Eu não tinha cabeça para nada e ainda tive que pagar do meu bolso para poder ouvir uma segunda opinião”, afirma.
No dia seguinte, no outro consultório, Maria contou o que tinha ouvido do médico que a havia atendido para a profissional que estava realizando o ultrassom. A médica perguntou o que a gestante sentia em seu coração, e Maria respondeu que achava que sua filha estava viva. Nesse momento, a médica deixou que a mãe escutasse os batimentos do bebê e confirmou o que ela sentia. “Nessa hora todo mundo chorou, foi uma emoção muito grande”.
Embora tenha ficado feliz com a notícia, Maria conta que chegou a desenvolver depressão. Ela relata que chegou a ser atendida por uma psicóloga da Policlínica, mas só se aliviou à medida que foi vendo que a filha estava bem. “Foi muito difícil, eu não tinha vontade de trabalhar e mal falava com meu marido e minha outra filha de 7 anos. Isso tudo abalou muito a nossa vida”, comenta.
Durante a gestação, ela conta que realizou o pré-natal na Policlínica do bairro e afirma que foi bem atendida. Mas, como teve episódios de perda de líquido, teve que retornar ao Complexo Hospitalar dos Estivadores e destaca que sempre pediu para que fosse atendida por outro médico, que não fosse o mesmo.
Quando a hora de dar à luz a filha chegou, no dia 8 de março de 2023, Maria também teve que ir para o mesmo Hospital. Ela contou que chegou na unidade por volta das 6h, já com a bolsa rompida e teve que até às 15h, com muitas dores e sangramento, para ter uma vaga. No entanto, por volta das 16h, ela relata que a equipe retornou para lhe avisar que tinham se confundido e que não haveria leito, por isso ia ser transferia para o Conjunto Hospitalar Maternidade Silvério Fontes.
Na unidade, ela foi orientada a realizar uma cesariana, pois foi informada que já havia se passado muito tempo e o bebê precisava nascer imediatamente. Ela destaca que foi bem atendida na unidade, mas por conta da demora para realizar o parto no outro hospital, a bebê nasceu com manchas no rosto e os pés roxos.
Maria fala que hoje, a filha Maria Clara está com 8 meses. “Ela é uma criança saudável, brincalhona e esperta. É um sentimento de vitória. Só dela estar aqui comigo, é uma felicidade enorme, ela é a minha vitória de hoje. Agradeço muito ao meu marido também que me deu força o tempo todo e nunca me abandonou, sofreu junto comigo e hoje a gente está muito bem com ela”, destaca.
Justiça
Os advogados Yuri Rufino, Felipe Cassimiro e Israel Costa são os representantes de Maria na causa. Eles contam que ainda nesta semana, será protocolado o processo administrativo e cível contra o hospital e contra o médico. “Como se trata de uma avaliação e laudo incorreto, a gente pode ver tanto a figura da imprudência, da negligência e da imperícia, pois o médico deixou de fazer algo também não teve iniciativa e falhou no conhecimento técnico”, explica Yuri Rufino.O advogado explica que se constatado que o profissional realmente violou a doutrina médica, ele pode perder o registro do Conselho Regional de Medicina (CRM). Felipe Cassimiro também explica que há a possibilidade também haja uma ação criminal contra o médico, caso seja comprovado que ele teve uma conduta dolosa ou culposa. “É uma questão bem delicada e gravíssima. Uma investigação terá que ser instaurada com essa finalidade e o casso pode ser levado até o tribunal do juri”, elucida.
Maria só teve coragem para denunciar a conduta do médico, pois foi incentivada por outros profissionais e familiares. “Eu estou fazendo isso, não só por mim, mas também por outras pessoas que também tenham passado por algo semelhante. Não quero que alguém passe pelo o que eu passei. Hoje eu fico muito feliz por estar com a minha filha nos braços, mas se eu tivesse aceitado que médico me falou, eu estaria contando uma história diferente e mais triste”, finaliza.
Nota do hospital
O Complexo Hospitalar dos Estivadores foi procurado pela reportagem, que informou que a paciente “compareceu ao pronto atendimento, em 12 de agosto de 2022, onde apresentou um exame de ultrassonografia realizado em outra unidade de saúde, em 2 de julho de 2022, quando foi orientada sobre a conduta expectante e retorno posterior ao hospital”.Após essa data, a unidade informou que a paciente “passou em atendimento na instituição por mais cinco vezes, entre outubro de 2022 e março de 2023, para realização de ultrassonografias morfológica e obstétrica e consulta médica, todas sem intercorrências” e que no “último atendimento, em 08 de março de 2023, para resolução da gestação, em razão da ocupação máxima do hospital foi transferida sem intercorrências para a maternidade municipal Silvério Fontes, por meio da regulação de vagas do município”.
Por fim, o hospital esclareceu que até o momento a instituição não foi procurada pela paciente ou representante para esclarecimentos, mas segue à disposição para acolhimento no que precisar. O médico que disse que o feto não tinha vida também foi procurando pela Reportagem para prestar esclarecimentos, mas até o fechamento dessa matéria não deu retorno.
A Prefeitura de Santos, informou por meio da secretaria Municipal de Saúde (SMS) que este caso não foi trazido ao conhecimento do executivo quando da ocorrência do fato relatado, mas que a pasta, por meio da Seção de Contratos de Gestão, realizará apuração dos fatos junto ao hospital e acompanhará o caso.
CONTRA TODAS AS FORMAS DE TERCEIRIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO!
Como se vê, terceirizar os serviços é fragilizar as políticas públicas, colocar a população em risco e desperdiçar recursos valiosos com ineficiência, má administração ou até má fé de entidades privadas.
Disfarçadas sob uma expressão que esconde sua verdadeira natureza, as organizações sociais (OSs), organizações da sociedade civil (OSCs) e oscips e não passam de empresas privadas, que substituem a administração pública e a contratação de profissionais pelo Estado. Várias possuem histórico de investigações e processos envolvendo fraudes, desvios e outros tipos de crimes.No setor da saúde, essas “entidades”, quando não são instrumentos para corrupção com dinheiro público, servem como puro mecanismo para a terceirização dos serviços, o que resulta invariavelmente na redução dos salários e de direitos.
Embora seja mais visível na Saúde, isso ocorre em todas as áreas da administração pública, como Educação, Cultura e Assistência Social. O saldo para a sociedade é a má qualidade do atendimento, o desmonte do SUS, das demais políticas públicas e, pior ainda: o risco às vidas.
Todos estes anos de subfinanciamento do SUS e demais serviços essenciais, de desmantelamento dos direitos sociais, de aumento da exploração, acirramento da crise social, econômica e sanitária são reflexos de um modo de produção que visa apenas obter lucros e rentabilidade para os capitais. Mercantiliza, precariza e descarta a vida humana, sobretudo dos trabalhadores. O modelo de gestão por meio das Organizações Sociais e entidades afins é uma importante peça desta lógica nefasta e por isso deve ser combatido.
Não à Terceirização e Privatização dos serviços públicos!