Confira na matéria abaixo mais um caso extremamente dramático que reflete bem a falta de humanidade de quem trata a saúde como mercadoria. Neste exemplo, a digital do poder público municipal e da empresa (a organização social INTS – Instituto Nacional de Tecnologia e Saúde) que atua no Hospital de Bertioga, no litoral paulista.
Por Aristides Barros
Em um caso semelhante a uma troca de reféns, uma advogada cogita pedir a prisão da secretária de Saúde de Bertioga para que o possível encarceramento force a Prefeitura de Bertioga a finalizar um drama envolvendo três gerações de uma mesma família: avó, filha e neta. Internada há dois anos e tendo recebido alta médica em janeiro de 2023, a criança ainda continua no hospital, em Santos.
Em agosto de 2022, a neta, de 05 anos, da ajudante geral Valdira Gomes de Oliveira, 43 anos, foi transferida do Hospital de Bertioga para a Santa Casa de Santos, a transferência foi motivada pela agravamento da saúde da menina, devido a suposta negligência médica no hospital bertioguense, acusam a avó e a mãe da criança que sofre de hidrocefalia.
Ela entrou no hospital com Covid, o que não foi detectado de imediato e após 15 dias no local a piora do quadro de saúde conseguiu um leito na ala pediátrica da Santa Casa de Santos. Desde que chegou ao local, então com três anos de idade, se encontra em estado de semiconsciência, disse a avó. A evolução grave da hidrocefalia seria uma sequela da Covid, não detectada no Hospital de Bertioga.
Segundo a ajudante geral, a sua neta sente tudo o que acontece à sua volta, sente a presença da avó e da mãe, ambas as mulheres percebem isso nas expressões faciais da menina quando as três ficam juntas.
Em janeiro de 2023, ela recebeu alta médica sob a condição de ir para casa mediante a continuação do tratamento por meio do home care, que é um conjunto de atividades desenvolvidas na casa do paciente em função da complexidade assistencial e avaliação socioambiental realizada por equipe multiprofissional de saúde.
Conforme a família, a Prefeitura de Bertioga reluta a prestar o serviço mesmo já tendo perdido quatro recursos da ação defendida pela advogada, que em 2023 foi à Justiça e venceu a causa para que o tratamento da criança seja domiciliar.
A própria equipe médica que acompanha a criança na Santa Casa de Santos aponta que a permanência dela no local oferece risco de complicações, em face de uma possível infecção bacteriana, o que já ocorreu por duas vezes com a paciente, conforme relatou a mãe e a avó. Outro motivo forte para sair do hospital é porque ela recebeu alta há um ano.
Em face disso e de a prefeitura bertioguense “barrar” a saída da menina é que a advogada recorreu a “estratégia de troca de reféns”, a liberação da menina ou a prisão da secretária de saúde de Bertioga. Para a defesa existem dois pontos graves desencadeados pelo Executivo bertioguense: descumprimento de ordem judicial e improbidade administrativa.
Destaca-se que o caso da criança se avizinha ao da funcionária pública municipal que sofreu por anos em cima de uma cama até morrer. Leia em Calvário de seis anos vivido por Maria do Carmo termina com a morte da servidora pública
“Tudo o que queremos é voltar a ter uma vida normal”
Os dois anos de internação mudaram radicalmente as vidas da ajudante geral Valdira e da sua filha, a estudante Marcielly Tauani Oliveira da Silva, 21 anos, que é a mãe da menina. Ela teve que “largar” tudo: estudos, trabalho, amigos e o conforto do lar para ficar perto da filha. Marcielly praticamente “mora” há dois anos na ala pediátrica do hospital.
Ficou por um ano dormindo em uma poltrona até conseguir uma cama para descansar com um pouco mais de comodidade. A mãe da menina não lança nenhuma crítica à Santa Casa de Santos e aos funcionários que tratam a sua filha.
“São muito bons e atenciosos, me dão ânimo nos momentos mais difíceis, em dois deles minha filha teve infecção bacteriana, foi levada para a UTI, fiquei aflita e eles pediram pra eu me manter firme que tudo ia dar certo. São excelentes profissionais, muito humanos. Mostram afeto enorme pelas pessoas, o que deixa gente mais segura”, afirma.
A única coisa que ela ressente é a falta de sal na alimentação, e às vezes desce para comer um “salgado” – coxinha ou um pastel – quando tem alguns trocados no bolso. Nas poucas saídas descobre que ainda existe um mundo ao qual deixou de fazer parte, desde que decidiu abandonar tudo para ficar com a filha.
“Eu quero voltar pra casa com ela, voltar a ter uma vida normal e a gente vai conseguir isso”, prevê Marcielly. A jovem mãe aparenta estar emocional, física e psicologicamente abalada por testemunhar e sofrer com outras mães que estão na mesma situação e de ver pessoas entrar em desespero ao perder um parente. “Dói muito ver tudo isso, a gente se consola entre nós mesmos, ajudamos um ao outro a suportar a nossa própria dor”, fala Marcielly.
Pouco dinheiro e muita fé
A dor da filha e as condições da neta caem com força sobre os ombros da avó, mas Valdira não desaba, refaz a esperança na fé divina de que tudo vai dar certo. “Eu sou brasileira e os brasileiros nunca desistem”, brinca em um momento que afasta a sensação dolorosa de como se estivesse com uma faca cravada no coração.
Assalariada, as suas economias expressa em R$ 10 mil que tinha no banco, zeraram, foram diluídos em gastos com passagens de ônibus e transporte por aplicativo, insumos para a criança e produtos para manter a menina lindinha. Um gasto mais acentuado foi na adequação do quarto para receber a neta, no seu retorno ao lar para trazer mais alegria à família.
Ela conta que desembolsou perto de R$ 4 mil na reforma das paredes para impedir infiltrações e mofos, “deixei tudo no jeito de um quarto hospitalar para receber os equipamentos médicos para continuar o tratamento da minha netinha”, fala alegremente e “temos muita fé em Deus que tudo vai dar certo”, espera.
A esperança não é só dela, mas de Francielly, Adrielly e Anderson, irmãs e irmão de Marcielly e de seus quatro sobrinhos menores de idade. “Todos estão ansiosos pela volta da priminha, não veem a hora dela estar novamente com a gente, na nossa casa que é o lugar dela”, finalizou Valdira.
Nesses dois anos que se seguem o distanciamento, o elo da família se tornou inquebrantável, os laços da família estão mais fortalecidos, a dor unificou fortemente as três gerações: avó, mãe e neta são inseparáveis.
A reportagem contatou a Prefeitura de Bertioga para que a administração desse a sua versão sobre os fatos, mas até o encerramento dessa matéria não houve retorno. O espaço está aberto para as respostas do governo municipal.