Reportagem de Márcio Leijoto, publicada no site O Popular de Goiás no último dia 15, traz informações detalhadas de artimanhas usadas por um instituto privado de olho nos vultosos recursos da saúde pública. Como sempre, muita terceirização, pouca transparência, nenhuma fiscalização e zero respeito ao serviço público. Confira abaixo:
Instituto usa CNPJ transferido e firma convênio de R$ 15 milhões com Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia
Apesar de afirmar que existe desde 2014, Vital Saúde começou a prestar serviços apenas em julho deste ano e usa registro que pertencia a organização educacional de Sorocaba (SP)
Uma organização da sociedade civil (OSC) que assinou um convênio de R$ 15 milhões com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia no dia 23 de agosto e conseguiu neste ano cerca de R$ 3 milhões em emendas impositivas de vereadores da capital usa o cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ) que até março pertencia a uma entidade sem fins lucrativos voltada para a área de educação em Sorocaba (SP). O convênio e as emendas são para consultas médicas em carretas nos bairros, serviço que tem atraído várias entidades em 2024 e movimentado milhões de reais em recursos públicos municipais.
A transferência de CNPJ não é ilegal, segundo especialistas ouvidos pelo jornal. Após assumir o registro antigo, a atual diretoria da OSC mudou o endereço oficial para Goiânia, sua razão social para Instituto Vital — Gestão Pública e seu nome fantasia para Vital Saúde Instituto e afirma existir há 10 anos. A própria SMS respalda esta informação. “Nos dados da Receita Federal, o instituto foi criado em 3 de junho de 2014. Conforme os estatutos sociais apresentados, nos termos da lei, a entidade teve alteração de sua denominação social”, informou a secretaria por meio de nota.
As atividades do Instituto Vital, entretanto, começaram apenas em julho, com recursos das emendas impositivas. Conforme consta em suas redes sociais, a organização fez o lançamento de suas atividades ofertando consultas na carreta entre os dias 4 e 6 de julho em uma praça no Setor Crimeia Leste. Até hoje, o instituto ainda segue se estruturando. O site, por exemplo, começou a ganhar conteúdo em setembro. No convênio, consta um endereço fiscal temporário, na capital, com o nome antigo, mas a organização já se instalou em Aparecida de Goiânia com o nome atual.
Até março, o CNPJ do Instituto Vital pertencia ao Instituto Noa. Entre abril e maio, uma outra diretoria, formada por pessoas residentes em Sorocaba e Ibiúna (SP) e sem qualquer conexão com a anterior, assumiu o registro público e mudou a razão social para Instituto Jasy. Não é possível encontrar nada feito pelo Jasy neste período na internet, ao contrário das atividades do Noa, que estão amplamente registradas.
No final de maio, a diretoria do Jasy renunciou, momento em que a organização foi repassada para a goianiense Christiane Guerra Alencastro Veiga Costa.
O Instituto Vital argumenta que é uma organização que existe, sim, desde 2014, e que ao longo dos anos foi mudando a diretoria e se dedicando a serviços diferentes, priorizando há algum tempo a área da saúde pública. Também diz que não é possível falar que o Noa, o Jasy e o Vital são institutos diferentes com o mesmo CNPJ. Entretanto, as diretorias do Noa e do Jasy quiseram encerrar o registro e não apenas renunciar para que os associados assumissem as funções, mas foram orientados a passar o documento para terceiros desconhecidos.
A jornalista Lucy de Miguel, que fundou o Noa e foi sua presidente desde 2014, afirmou ao POPULAR que no começo de 2024 procurou um escritório de contabilidade em Sorocaba porque queria encerrar as atividades da organização. O CNPJ, porém, foi transferido para novos diretores em março, quando mudou a razão social e o nome fantasia. “Desconheço os responsáveis pela nova diretoria da organização, que passou a se chamar Instituto Jasy. Além do mais, sempre trabalhamos com os temas relacionados à Educação”, afirmou Lucy.
Lucy esclarece que seu trabalho como presidente no Noa foi encerrado em 24 de fevereiro deste ano, com toda a diretoria apresentando uma carta de renúncia. O registro da destituição de toda a diretoria do Noa data de 14 de março. “Não tenho e nem nunca tive contato com nenhuma destas pessoas que estão à frente da nova gestão.”
O POPULAR localizou as seis pessoas que apareciam como diretores e conselheiros do Instituto Jasy entre março e maio, porém parte delas, ao serem contatadas, bloquearam o contato com a reportagem, seja por telefone, aplicativos de conversa e redes sociais. Outras não retornaram as mensagens. Uma delas, antes de desligar e bloquear o contato, afirmou que não conhece ninguém de Goiânia.
A pessoa que aparecia como presidente tem 28 anos e em suas redes sociais não há nada que a associe ao terceiro setor. A relação de Christiane com o Instituto Jasy se deu por meio do consultor Pedro Andrade Cruz, especialista em terceiro setor que também é de Sorocaba. Pedro diz que conhecia um dos diretores do Jasy, Renato Nogueira, e este comentou que estava pensando em acabar com o instituto, encerrando seu CNPJ. Foi quando o consultor teria proposto que a goianiense, que ele diz já ter desenvolvido projetos na área de saúde, assumisse a organização. Ainda segundo Pedro, um mês antes da transferência, ela entrou como associada do Jasy.
A assembleia geral para eleger Christiane presidente do Jasy foi em 31 de maio e teve como participantes apenas ela e Pedro, este para secretariar os trabalhos. O documento foi protocolado em um cartório de Sorocaba em 21 de junho. O primeiro termo de fomento, no valor de R$ 2 milhões, com recursos de emenda impositiva foi assinado em 2 de julho. Já o plano de trabalho que deu origem ao convênio de R$ 15 milhões com a SMS foi despachado na secretaria em 9 de julho.
O trabalho do Instituto Vital se assemelha ao do Instituto de Pesquisa e Apoio à Gestão Pública (Ipagesp), organização social de saúde (OSS) de Olinda (PE), que chegou a Goiânia em 2023 e desde o primeiro semestre deste ano começou a fazer consultas médicas em unidades móveis. Neste ano, o Ipagesp conseguiu R$ 6 milhões em emendas impositivas para os serviços nas carretas de saúde. Pedro Andrade Cruz, que indicou o Instituto Jasy para Christiane atuou como diretor executivo do Ipagesp e hoje é consultor de gestão das duas organizações.
Há mais semelhanças. As carretas são da mesma empresa, a Truck Lab, de São Paulo. O primeiro endereço do Instituto Vital é o mesmo em que está registrado o Ipagesp, uma sala comercial em um edifício na Avenida Jamel Cecílio, no Jardim Goiás. Atualmente, o Vital fica em um prédio comercial na Cidade Empresarial, em Aparecida de Goiânia. Os textos dos planos de trabalho entregues à SMS são semelhantes, com vários trechos iguais. Nos primeiros agendamentos feitos pelo Vital, o telefone usado – com DDD 16 – está registrado como sendo de uma organização social de Ribeirão Preto que presta serviço ao Ipagesp, o Grupo Futuro.
Uma diferença entre o Ipagesp e o Vital está na forma como as emendas impositivas foram direcionadas a estes institutos. A OSS de Olinda recebeu nove, sendo sete delas com a identificação do nome no momento em que a emenda do vereador foi acrescentada à Lei Orçamentária Anual (LOA), no final de 2023. Outras duas estavam destinadas originalmente para outra instituição e foram transferidas para o Ipagesp. Já o Instituto Vital recebeu sete emendas, mas todas foram encaminhadas à LOA sem a identificação da entidade beneficiada.
Vereadores ouvidos pelo POPULAR informaram que foram orientados pela SMS a destinar o maior número de emendas para os atendimentos em unidades móveis, em alguns casos a deixarem o nome da instituição beneficiada em aberto. Posteriormente, na hora de destinar a verba para uma instituição que faz o serviço eram propostos alguns nomes pela pasta, nestes em que a escolha foi feita após à inclusão na LOA o nome do Instituto Vital aparecia ainda com o do registro anterior ( Jasy).
O plano de trabalho do convênio de R$ 15 milhões envolve um projeto chamado “SUS em Ação – Unidades Móveis de Saúde”, com a promessa de “ampliar o acesso da população a serviços de saúde especializados, diagnósticos e pequenas cirurgias por meio de unidades móveis de saúde”. Segundo Pedro e Christiane, o Instituto Vital tem experiência com este trabalho, tanto pelas atividades já desempenhadas por seus membros como pelo próprio consultor, que diz trabalhar com carretas desde 2019.
O projeto de 11 páginas trata da questão do atendimento a ser feito de forma mais genérica, citando modelos executados pelo Ministério da Saúde e pelo Governo de Goiás, mas sem apresentar uma forma de encaminhá-lo dentro de Goiânia. Também afirma que os R$ 15 milhões devem ser pagos em duas parcelas, uma de R$ 5 milhões no momento da assinatura do convênio e outra de R$ 10 milhões 30 dias após a execução do chamado Eixo 1, que prevê consultas e exames para o público feminino, para estudantes da rede municipal e exames oftalmológicos. Já os outros dois eixos abordam cirurgias de catarata e glaucoma e pequenas cirurgias em 60 dias.
Não há detalhes sobre a estrutura a ser utilizada nem o público que pode ser atendido com o repasse de R$ 15 milhões. O contrato disponibilizado no portal de transparência também não aborda estes dados. O consultor de gestão do Vital explica que para saber isso é preciso que a SMS informe primeiro a demanda existente na rede.
“Vital, Noa e Jasy são um só instituto”
A presidente do Instituto Vital, Christiane Guerra Alencastro Veiga Costa, e o consultor de gestão da organização, Pedro Andrade Cruz, negam que a organização seja nova e esteja usando o CNPJ que pertenceu a outras instituições. “O Instituto Vital, Instituto Noa e Instituto Jasy são o mesmo instituto, o mesmo CNPJ. Houve a alteração do nome: de Noa para Jasy, de Jasy para Vital. A entidade existe desde 2014, conforme consta na Receita Federal e nos atos registrados em Cartório de Pessoas Jurídicas. O CNPJ é de Sorocaba porque foi fundado nesta cidade. Há associados de diversas localidades”, afirmou Christiane por email.Nos primeiros questionamentos feitos pelo POPULAR , a direção do Vital se esquivou das respostas sobre como surgiu a proposta do convênio com a SMS e quando os vereadores foram procurados com os pedidos de emendas para as carretas de saúde. As informações repassadas ao jornal foram genéricas e técnicas, informando sobre legislação e a movimentação do terceiro setor na área da saúde.
“O terceiro setor movimenta 10% do PIB, é uma atividade de fomento de políticas públicas de âmbito nacional. Toda entidade sem fins econômicos tem preferência em atuar de forma complementar ao SUS. Atualmente, 65% do SUS é gerenciado ou executado por convênios com entidades sem fins econômicos”, escreveu a presidente quando questionada sobre o convênio de R$ 15 milhões.
Christiane também diz que sempre foi associada ao Instituto Jasy, mas não falou a partir de quando e não especificou se foi depois que o CNPJ foi transferido do Noá para o Jasy, em março. “Ocorre que assumi a presidência em junho, mas sempre fiz parte do instituto.”
Questionada sobre a experiência do Vital com projetos na área de saúde, ela disse que no quadro social do instituto “há diversos profissionais da saúde e especialistas em gestão de serviços de saúde”.
Após novo questionamento, ela passou uma relação de nomes do corpo diretivo e de serviços prestados, mas sem detalhes que permitissem confirmar as informações. “Toda associação é um grupo de pessoas que se juntam em prol de projetos e fomento de políticas públicas e de cidadania, visando o desenvolvimento da sociedade. A capacidade técnica-profissional de nossos associados, empregados, prestadores de serviços constituem a experiência do instituto.”
Apesar de Pedro ter informado que foi ele quem apresentou Christiane para a direção do Instituto Jasy, quando esta afirmou que pretendia encerrar as atividades, a atual presidente diz que não houve influência do consultor na escolha do Jasy para se transformar posteriormente no Vital e voltou a frisar que o instituto existe desde 2014. E apesar de não apresentar detalhes, ela diz que o Jasy/Vital já executou projetos nas áreas sociais e de saúde “em parceria com outras instituições” em Goiás, São Paulo, Paraná,
Ainda segundo Christiane, a ideia de desenvolver atendimento em unidades móveis se deu a partir de pesquisa nas demandas suprimidas dos Estados e municípios juntos ao SUS. “Para não depender das dependências físicas deles, optamos pela montagem desses consultórios móveis, que nos traz agilidade em atendimentos e principalmente logística. Podendo assim em curto prazos de tempo mobilizar e desmobilizar nossas unidades para atender a população necessitada.”
Christiane diz ainda que a proposta do convênio com o SUS também teve como motivador a experiência desenvolvida pelo instituto com base nos trabalhos executados por meio das emendas impositivas. Porém, conforme os contratos e as informações nas redes sociais, estes trabalhos começaram depois, em julho deste ano. Foi uma carreta em julho e duas em agosto, pelo Vital até agora. Ainda segundo ela, a SMS foi motivada a apostar nestes serviços devido ao “sucesso de atendimentos e redução drástica nas filas”.
Christiane afirmou que as emendas impositivas foram a partir de escolhas feitas por vereadores após procurarem a SMS e serem informados sobre as “instituições aptas a receberem tais recursos”, “atendendo assim seus bairros e bases eleitorais”. A informação coincide com o que foi informado pelos vereadores ao POPULAR . A SMS não se manifestou sobre.
Em 31 de agosto, O POPULAR pediu para Christiane um dos atestados de capacidade técnica do instituto. Ela respondeu que apesar de possuir vários atestados estão todos em modelo físico e no setor de contabilidade e que não conseguiria solicitar os mesmos naquele dia. O consultor em gestão do instituto também se comprometeu a enviar atas de assembleia e estatutos sociais, mas não o fez até a conclusão desta reportagem.
Pedro nega que as carretas feitas por meio de emendas tanto pelo Ipagesp como pelo Vital sejam usadas de forma eleitoral pelos vereadores. “Não tem ingerência política”, afirmou o consultor, para quem a expansão do serviço é uma necessidade e um benefício para a população mais carente. “Goiânia tem uma grande dificuldade na atenção primária”, afirmou.
Sobre as semelhanças entre o Ipasgesp e o Vital, Pedro explica que é o que a legislação chama de “atuação em rede”, citando a lei federal 13.019, que regula as OSC. “As entidades podem se juntar para desempenhar um projeto. Porém, o plano de trabalho do Ipagesp é uma coisa e o do Vital é outra”, garante.
Mais de R$ 45 milhões em repasses para carretas
As carretas da saúde conquistaram os vereadores por trazer um retorno eleitoral rápido com base nos recursos das emendas impositivas. Antes estas verbas eram destinadas a obras como revitalização e construção de praças, quadras esportivas e reformas de escolas e postos de saúde, porém acabavam esbarrando na dificuldade da Prefeitura em executar obras e nos problemas envolvendo as crises da Companhia Municipal de Urbanização de Goiânia (Comurg), contratada para fazer estes serviços.Levantamento feito pelo POPULAR encontrou o encaminhamento de mais de R$ 45 milhões para seis entidades privadas sem fins lucrativos com recursos oriundos de convênios diretos com a SMS ou de emendas impositivas por meio de termos de fomento. A secretaria tentou fazer uma contratação direta para fornecimento das carretas em 2023 e neste ano tentou fazer uma licitação para o mesmo serviço, porém as iniciativas não foram adiante.
As carretas realizadas a partir das emendas impositivas, apesar de oferecerem um serviço que está conectado à rede municipal de Saúde, pois as informações depois são encaminhadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) para continuidade dos atendimentos, não ganham divulgação oficial por parte da Prefeitura, dependendo exclusivamente da mobilização feita pelos vereadores nos bairros, que são escolhidos de acordo com suas respectivas bases eleitorais. Os institutos contam com poucos seguidores em suas redes
sociais, muitas delas recém-criadas.O POPULAR acompanhou a carreta da saúde organizada pelo Instituto Vital no Residencial Serra Azul, nos dias 23 e 24 de agosto. O serviço — voltado exclusivamente para o público feminino – durou dois dias e foi feito com base em recurso de emenda impositiva. A divulgação para os moradores começou um dia antes com um carro de som usado por cabos eleitorais do vereador autor da emenda. Nos dias de atendimento, cabos eleitorais abordavam as mulheres que chegavam.
A prática de atrelar o evento ao autor da emenda é comum. Em outras carretas promovidas por outras organizações, os vereadores gravavam vídeos, apareciam no local, conversavam com pacientes. Em alguns casos, a carreta é associada diretamente ao vereador e não à emenda ou à Prefeitura.
Vereadores ouvidos pelo POPULAR afirmam que o retorno eleitoral destas carretas é imediato e citam uma parlamentar no Congresso Nacional que há anos é conhecida – ela e o marido – pela presença de uma carreta própria do casal nas cidades goianas. “O retorno é na hora, o atendimento acontece e a pessoa sabe que foi o vereador que levou ali a consulta. Antes a gente dava emenda para obras, mas elas nunca eram concluídas”, comentou um vereador.
A SMS não informou como surgiu a ideia de fazer o convênio com o Instituto Vital e citou a legislação vigente que permite este tipo de acordo. Sobre o valor de R$ 15 milhões, também apresentou uma resposta explicando a parte técnica do repasse e disse que é “conforme a necessidade e a demanda dos serviços públicos de saúde”.
Sobre o projeto “SUS em Ação – Unidades Móveis”, a secretaria afirmou que segue o modelo do Programa Nacional de Redução de Filas, instituído pelo Ministério da Saúde em 2023. E em relação aos locais escolhidos pelos vereadores para que as carretas sejam instaladas, a SMS disse que são atrelados aos indicadores da Atenção Básica e que não cabe a pasta checar possível uso eleitoral destes serviços por parte deles.