Imagine a situação: você preside uma Ong e, ao mesmo tempo, ocupa um cargo público de coordenador de um programa estadual. Pois bem, imagine agora que, usando de sua posição de agente público, você contrate a sua própria Ong para prestar serviços para o Estado em processo que envolve repasses da ordem de mais de R$ 100 milhões. Imaginou a situação?
Pois pare de imaginar. Esta situação absurda é realidade e os cofres públicos do Governo do Estado só não foram mais penalizados porque o Ministério Púbico agiu antes.
A situação foi abordada no ano passado pela imprensa. Entre os jornalões, O Estado de São Paulo deu destaque, em abril do ano passado, nesta matéria.
Em resumo, o Governo do Estado contratou uma entidade filantrópica presidida pelo psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador do programa anticrack da Secretaria Estadual de Saúde, para administrar o futuro hospital de dependentes químicos da Cracolândia, na região central da capital. A Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), organização social de Saúde vinculada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), receberia um total de R$ 114 milhões por um contrato de cinco anos para gerenciar a unidade, na Rua Helvétia. O Hospital integra o Programa Recomeço, projeto do Governo Estadual do Programa de Combate à Dependência do Crack, do qual Laranjeira é coordenador desde maio de 2013.
O prédio de 11 andares chama-se Unidade Recomeço Helvétia e terá leitos para desintoxicação, centro de convivência, dois andares para tratamento de emergências psiquiátricas , entre outros serviços.
Para o Ministério Público, o processo todo foi caracterizado por ilegalidades. De acordo com entrevista do promotor Arthur Pinto Silva, da Promotoria de Direitos Humanos – Saúde Pública do MPE-SP ao site Viomundo, um dos vícios dessa relação é o fato de que “nas duas pontas do contrato está o doutor Laranjeira, que ainda teve informações privilegiadas sobre o projeto antes mesmo do chamamento público para a gestão do hospital. Conflito total de interesse.”
“Além disso, a SPDM está fazendo reforma do prédio, atividade que não está entre as suas funções. Todas as obras são sem licitação”, ressaltou o promotor.
Ação Civil
Essas irregularidades levaram o Ministério Público Estadual a entrar com ação civil pública, solicitando anulação do contrato.
O juiz Valentino Aparecido de Andrade, da 10ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), acatou o pedido, conforme noticiou o MP.
Em 10 de julho, em decisão liminar, ele determinou a suspensão imediata da eficácia do contrato. Também que governo do Estado de São Paulo ou a SES-SP não faça mais nenhum repasse à SPDM.
O juiz faz menção direta à dupla condição de Laranjeira e ao fato de as obras da reforma terem sido contratadas pela SPDM sem licitação mas com dinheiro público.
Até 29 de abril, segundo a ação civil pública, o governo estadual repassou R$ 7.060.473,77 à SPDM, que escolheu a OHM Construtora, de Toshiaki Ochiai e Eduardo Toshihiko Ochiai, para fazer as obras.
Tudo leva a crer que a SPDM tinha informação privilegiada a respeito do projeto antes mesmo que uma organização social fosse selecionada. “Somente isto explicaria a SPDM ser a única a ter apresentado proposta no chamamento público realizado, uma vez que o mesmo propunha prazos completamente desarrazoados para manifestação de interesse e apresentação de proposta para um projeto da monta organizacional e financeira informado. De fato, tem-se que as organizações sociais tinham apenas 5 dias para manifestar interesse no projeto e 7 dias para apresentar suas propostas”, diz a ação.
Recurso
A Secretaria da Saúde informou na época ao jornal O Estado de São Paulo, que entraria com recurso “por ter plena convicção sobre a lisura do processo de contratação da SPDM”, feito “de forma absolutamente transparente”.
Segundo a pasta, o contrato teve parecer legal da Procuradoria-Geral. A secretaria afirmou ainda que Laranjeira atua como voluntário tanto na SPDM quanto no governo do Estado e a escolha da entidade para gerir o hospital da Cracolândia foi “absolutamente técnica”.
A SPDM não respondeu, mas anteriormente, a entidade já havia declarado que o contrato foi firmado de forma transparente e dentro da lei.