São vários os golpes contra o Sistema Único de Saúde em curso. Um deles foi a lei, aprovada em dezembro e sancionada em fevereiro último, que libera a entrada do capital estrangeiro na operação da prestação da assistência à saúde no Brasil. Outro golpe que carrega na sua essência mais uma tentativa de desmontar o SUS e a compreensão da Saúde como direito, é o mecanismo chamado Orçamento Impositivo, que prevê investimentos da pasta a partir da Receita Corrente Líquida (RCL) e a distribuição de uma boa fatia dos recursos para as mãos dos parlamentares.
Lígia Bahia, pesquisadora e professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ), detalha todos os prejuízos que esse verdadeiro “tiro ao alvo” no SUS acarretam. Em recente artigo publicado no site Carta Maior, ela ressalta que esse conjunto de medidas não vêm em sequência em vão, pois são provenientes dos interesses dos empresários do setor, representados por deputados como Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados que quer desmantelar de vez o sistema obrigando aos empregadores oferecerem planos privados aos seus funcionários (EC 451).
Leia o artigo na íntegra:
“No início de 2015, o SUS foi alvo de duas mudanças que restringem objetivamente o direito à saúde aprovado na Constituição de 1988.
A primeira alteração refere-se a “constitucionalização” do subfinanciamento, com a aprovação da emenda constitucional denominada orçamento impositivo. A segunda mudança é a permissão para participação direta ou indireta, incluindo o controle, do capital estrangeiro na assistência à saúde. O conteúdo das medidas representa um enorme retrocesso no longo e penoso processo de efetivação do SUS e ocorre em um contexto internacional e nacional distinto daquele marcado pelo neoliberalismo e descrédito nas políticas universais.
Movimentos sociais e entidades de saúde pública que resistiram às sucessivas tentativa de desmonte do SUS nos governos Collor, Itamar e FHC foram surpreendidos pelos ataques inesperados e desfiguradores do direito à saúde.
Até pouco tempo atrás, problemas de acesso, qualidade e subfinanciamento do SUS, contabilizando-se as ‘bocadas’ dos empresários da saúde no fundo público eram atribuídos às coalizões políticas de centro-direita. Consequentemente, as respostas aos ataques ao SUS gravitaram em torno da articulação com partidos políticos e parlamentares progressistas. Agora, o tabuleiro e as peças do jogo são diferentes. Em janeiro de 2015, foi sancionada por acordo de lideranças a Lei 13.097 que permite a participação direta ou indireta, inclusive o controle, do capital estrangeiro em todas as atividades de assistência à saúde, até mesmo em instituições filantrópicas.
Em fevereiro, foi aprovada na Câmara Federal, por 427 a 44 votos, a EC 358 que reduziu o já minguado orçamento federal para a saúde de 14% da receita corrente liquida em 2000 para 13,2% em 2016.
Embora as pressões para a emissão das duas medidas sejam originadas de fontes distintas, lobbies empresariais e ministérios da área econômica, a sinergia entre ambas é óbvia.
O racionamento no acesso e os problemas de qualidade no SUS serão intensificados e os fundos estrangeiros poderão ser utilizados para a expansão da oferta privada. Em nome da governabilidade, tradicionais defensores dos princípios do SUS se pronunciaram favoráveis a alterações no SUS constitucional que sequer foram apresentadas aos fóruns de debate da área.
A votação no Congresso explicitou a existência de um bloco majoritário contrário à priorização da saúde pública. A maioria dos parlamentares do PMDB, PSDB, DEM, e também do PT, PSB, PDT e PV, foi favorável à redução do financiamento. A oposição contou apenas com quase todos deputados do PCdoB e do PSOL e votos esparsos em alguns dos demais partidos. O corte de recursos teve, inclusive, o voto favorável de um deputado sanitarista do PT.
Advertências de órgãos como Ministério Público e da Advocacia Geral da União, sobre descaracterização dos fundamentos democráticos e nacionais do SUS, não foram suficientes para demover a tramitação a toque de caixa de profundas alterações políticas e jurídico-legais. A transformação em lei de um piso orçamentário que é igual ao teto soma-se às derrotas impostas pelo descumprimento da Constituição Federal, que destinava no mínimo 30% do orçamento da Seguridade Social para a saúde, retirada do Fundo da Previdência Social da base de cálculo dos recursos, e desvirtuamento da destinação da CPMF.
O retrocesso inviabilizou e desmobilizou o Projeto de Iniciativa Popular, o Saúde 10, organizado pela CNBB, OAB e Conselho Nacional de Saúde, subscrito por mais de dois milhões de brasileiros, que previa a aplicação de no mínimo 10% da Receita Corrente Bruta (RCB) da União para a saúde.
Logo depois, em março, o deputado Eduardo Cunha, do PMDB, presidente da Câmara e um dos beneficiados por doações dos planos, apresentou a proposta de Emenda Constitucional 451, obrigando todos os empregadores, de trabalhadores urbanos e rurais, a fornecerem planos privados de saúde, ou seja, estabelecendo por decreto estatal, um extenso mercado de planos de saúde.
A justificativa para o retorno aos tempos do seguro social privatizado dos anos 1970-1980 é a bandeira da garantia do direito à saúde diferenciado para trabalhadores. Trata-se de uma volta ao tempo da cidadania regulada pela inserção no mercado de trabalho. Esse golpe sobre o SUS seria fatal, mas parece que não prosperará. O próprio autor da proposta de mudança constitucional na saúde está empenhado na aprovação da legislação sobre terceirização, que certamente é contraditória com a perspectiva de transferência para empresas empregadoras das responsabilidades de atenção à saúde. É amplamente conhecido que as coberturas de planos privados estão fortemente correlacionadas com empregos estáveis em empresas de grande porte.
Atirar no SUS é no mínimo um gesto imprevidente. A mercantilização da saúde pavimenta o caminho para os gastos catastróficos com saúde de indivíduos e famílias. Portanto, a solução para a insatisfação com saúde evidenciada em todas as pesquisas de opinião de distintas fontes não é a privatização. O Brasil é o único país de renda média que possui um sistema universal de saúde, esse é um cartão de visitas extremamente valorizado no exterior, que perderá a validade se o SUS se tornar similar a tantos outros programas de saúde focados na assistência aos pobres. Nos fóruns especializados, o SUS é considerado um modelo orientador para outros países que ainda segmentam os cuidados à saúde. Nós ousamos avançar, avançamos, inclusive em conjunturas muito desfavoráveis. É paradoxal que o SUS continue sendo alvejado pelos lobbies empresariais em tempos que estimulam o diálogo.“